Era tarde quando cheguei à tua porta.
Tão tarde...
Tarde demais, pensei eu. Deixei o punho pairar em frente à madeira fria, torturando-me de propósito, penitenciando-me.
Eu sabia que não era possível me perdoares.
Tinham-me ressuscitado há tempo demais, tempo demais longe de ti.
Pensara ver-te em carne e osso, viva, real. Um alvo onde finalmente disparar as minhas flechas.
Mas fui-me apercebendo que todos os poemas o atravessavam como se de nevoeiro se tratasse. A vida não é lugar para mim e já deveria ter aprendido essa Lição. Mas agora acabou,
a Lição está dada.
A escola fechou.
E ali estava de novo: à tua porta.
Com uma mão no ar, à espera que me ouvisses sem que te chamasse, à espera que aceitasses o meu pedido de perdão sem que os meus lábios libertassem palavra alguma.
Procurava coragem na ponta dos meus sapatos quando a porta se entreabriu.
Não levantei o olhar pois sei qual a condição de me aceitares nos teus braços. Sei que assim que te olhe te esfumarás num ápice.
Tentando evitar ouvir a tua cólera, aspirei começar a falar, mas a tua voz chegou com um vestido lindo, pintado em tons de ternura:
- Entra... Deves estar cansado...
A porta fechou-se atrás de mim e tive o instinto de a trancar de vez. Mas a esperança é uma maldição que nos aflige a todos.
E este? A sério... País que produziu GENTE desta magnificiência nunca poderá ser pequeno...
"O NOSSO MUNDO
Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Pousando em ti o meu olhar eterno
Como pousam as folhas sobre os lagos...
Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todo fantasmas tristes e pressagos!
A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas, hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor! ... As nossas bocas juntas!..."
Florbela Espanca
Adoro encontrar poemas ou letras de musicas que me atingem em cheio no peito. aqui fica a letra da música "Música de Filme" dos Toranja...
"Dentro de mim Por dentro de mim É pena quase não poder ficar És quente quando a luz te traz Quase te vi amor Quase nasci sem ti Quase morri Dentro de mim Ficas dentro de mim Por dentro de mim Estás dentro de mim Silêncio.Lua.Casa.Chão És sitio onde as mãos se dão Quase larguei a dôr Quase perdi Quase morri Dentro de mim Estás dentro de mim Por dentro de mim Ficas dentro de mim Sempre só mais um homem Mais humano Mais um fraco.. Sempre.. Só mais um braço Mais um corpo Mais um grito Sempre.. Dança em mim! Mundo, vida e fim! Dorme aqui Dentro de mim.. É pena quase não poder ficar No sítio onde as mãos se dão Quase fugi amor Quase não vi Vamos embora daqui Para dentro de mim"
- Pssst... - ouvi.
Caminhava descontraído pela estrada, ocupado com pequenas manchas que me foram surgindo nas mãos e no peito, voltado para dentro como um narciso amarelo, prestes a desaparecer dentro de mim próprio. Caracol invejoso.
Quando me tocaram no ombro, demorei a desenrolar-me até aos ouvidos, para que pudesse deixar entrar as palavras de outrem.
- Bom dia. - era uma brisa com o rosto pintado de esmeralda e mel.
Os meus olhos saborearam aquele deleite por breves momentos, com crescente apetite sorridente.
- Bom dia. - respondi, expectante.
- Desculpa, mas creio que deixaste cair algo. - soprou-me. Com um gesto despreocupado, divertido, apontou para algum do caminho que eu tinha percorrido.
Senti-me um idiota quando vi que, com o passar dos passos, tinha deixado escorregar demasiadas coisas que sempre me tinham sido importantes: telas enormes concluídas que apenas exibiam um branco envergonhado; poemas e sonetos que nunca chegaram a saltar do sonho para o papel; gritos interiores que teimei em deixar amordaçados
na berma da estrada;
a minha Liberdade, há demasiado tempo adiada...
Todas estas coisas fui deixando cair, sem reparar na falta que o seu peso me fazia,
sem me aperceber de como foram deixando a minha alma vazia.
- Oops? - sorri envergonhado. Recuei agradecendo à brisa de esmeralda e mel, quem eu tinha quase a certeza de reconhecer de algures.
Recolhi tudo o que pude, desejando ter mais alguns braços. Sorri, não compreendendo
como pude me ir perdendo
assim ao longo do meu caminho.
Ivan criou a sua própria mulher...
Foi sem querer... Tinha catorze anos. Criou-a naquela altura de liceu em que nasce um ser humano dentro de nós e quer à força encontrar espelhos à sua volta. Ivan não os encontrou. A começar por ter um nome estranho num mundo em que pupulavam os “Joões” e os “Manuéis”, Ivan nunca encontrou um lugar ou um par de braços a que pudesse chamar de “casa”...
A dama Imaginação sempre exercera um domínio fortíssimo sobre Ivan. De uma forma natural, nasceu a Anaísa, rapariga medianamente bonita, de cabelos ruivos, da mesma estatura de Ivan, da mesma idade. Mas a secção física da personagem era de tal forma secundária que Ivan apenas criou estes pontos específicos. Nem um rosto fez. Não era importante. O que atingia Ivan como uma bofetada violenta era o que brotava dos lábios de Anaísa. Um reflexo perfeito dele próprio. A mesma música, os mesmo filmes, o completar das frases dele. Ela era a sua “Cabelos de Fogo”. Ele era o seu “Tigre”.
Foi a ela que escreveu o primeiro poema. À musa irreal. Foi com ela que teve o primeiro sonho erótico. Ivan sonhou vezes sem conta que os seus sonhos não eram apenas sonhos. Sonhou que, de facto, eram um encontro com a sua musa inexistente, num plano superior, que ela estaria algures a sonhar com ele, a criá-lo...
E Ivan terminou o liceu. Faculdade. O pegar na alma e remodelá-la. A transformação completa do seu ser. O contacto com raparigas reais. E a busca pela sua Anaísa continuou. Sempre que via uma rapariga com cabelo ruivo, corria para tentar conhecê-la, quebrar o gelo, a dança, a conversa, o beijo, a desilusão. Era sempre a Desilusão que Ivan encontrava no final do arco-íris, ao invés da sua Anaísa.
A desistência da busca chegou célebre. E exactamente como o chão chega para algo que se atira ao ar: inevitável. Ivan abriu os olhos para outras mulheres. Sim, pois eram mulheres, agora. Pensou que se apaixonou. Abriu os olhos, novamente. Voltou a pensar que se tinha apaixonado. Repetição...
Anaísa passou de musa a motivo de vergonha. Mas logo depois voltava, como uma recordação de adolescência que se preza e se guarda ao peito como algo que faz parte de nós. Longas conversa tinha Ivan, em longas viagens de carro ou comboio. Só Anaísa o compreendia. O seu espelho. “Sabes há quanto tempo estou à tua espera?”, perguntava-lhe Anaísa. “Descobre-me... Revela-me... Toca-me de uma vez...”
Chave. Ignição. Explosão. Engrenagens rudes que se tocam, lascivas, e que impelem o carro de Ivan adiante. Um concerto de música. Ivan teve grandes problemas em chegar a horas. Mas conseguiu. Entrou no auditório e começou a sentir o desconforto natural que surge antes de uma guerra entre planetas. Passeou os olhos pelas dezenas de pessoas que se amontoavam à porta do auditório. E o concerto desapareceu da mente de Ivan. A quantidade de rostos familiares que surgiam diante de si amedrontaram-no de tal forma que foi incapaz de dizer o que quer que fosse até ao final do sonho. Quadros surreais, como ver a sua professora primária, a sua professora preferida do 2º ciclo e uma professora do 8º ano, a conversar como se falassem dele. Sem aviso, toca-lhe no olhar o professor de liceu que o inspirou em seguir a profissão que tem. Na aula do qual escreveu o primeiro poema à musa. A Anaísa. Mais ao fundo, sentada, estava a sua primeira paixoneta pós-criação de Anaísa. A primeira Desilusão. Uma espécie de professora ela própria. Todos estavam lá. Quase que Ivan pensou que aquele concerto tinha sido feito por ele. E para ele. Sentiu um trovão cantando ao longe. E a música começou.
Os músicos foram sendo iluminados um a um. Um pianista, um guitarrista, um violoncelista, um baterista... Depois do quinto foco se inflamar, Ivan não se lembra de se lembrar de mais nada. Sentada numa cadeira no palco, de violino na mão, estava uma rapariga medianamente bonita, de cabelos ruivos, da mesma estatura de Ivan, da mesma idade. Ivan tremeu. A sua Vida já o sentara por diversas vezes naquela sala de aula e lhe tinha ensinado aquela lição. No fim do arco-íris estaria mais uma Desilusão. Mas todo o quadro que antecedera o concerto deixou-o desassossegado. Não conseguiu descolar os olhos da menina durante todas as canções. O violino chorava mares de sorrisos e de sonhos perdidos. Tremeu ao pensar que seria a sua Anaísa. Tremeu ao pensar que seria capaz de correr aos camarins, deixar um bilhete com “Ivan”, “Tigre” e o seu número de telefone. Se fosse a “sua” musa, entenderia. Tremeu ao receber um telefonema de madrugada com uma voz do outro lado que dizia: “Sou eu...” Tremeu de novo quando uma das músicas acabou e foi resgatado de volta de mais aquele sonho pelos aplausos do público.
O pianista começou a apresentar os músicos. Sons brotavam da sua boca, mas Ivan não os compreendeu. Só compreendeu duas palavras: “Violino” e “Anaísa”.
Os pulmões de Ivan incharam até ao limite possível. Sentiu o coração bater na ponta dos dedos. A sua musa real. A sua musa existia. Mas logo a Vida reforçou a lição. O pianista apresentou então o baterista. “Bateria”, “Ivan”. E a “sua” Anaísa lançou um beijo ao baterista.
Anaísa tinha encontrado o “seu” Ivan. O errado...
A música seguiu depois disto, como pessoas de luto após o caixão num cortejo fúnebre.
Ivan seguiu também. Iria encontrar a sua musa. Mas para sempre teria a certeza de ir ao encontro da musa errada..."
LC
Estou com um dia de atraso, bem sei. Mas "no dia a seguir ao dia Mundial da Poesia" não podia deixar de partilhar o poema que foi o parteiro da minha mente, quando esta nasceu. Saudações, grande Pessoa.
"Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos.
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!"
Álvaro de Campos
Lancei-me à estradahá tempo demais
Filme do qual não me lembro do início
Sentei-me hoje, dscansando dos meus ais
Votando o Tempo a um doce desperdício.
Criaturas mais experientes na vida
Com muita mais estrada percorrida
Desdenharam enquanto descansava.
Não compreendiam o porquê da fadiga
Diziam que o meu caminho era uma formiga
Perto do elefante que ainda faltava.
Farto de tantas agressões
Não me consegui conter
De pé, abdiquei em plenos pulmões
Da pouca razão que pudesse ter:
"Se ainda tenho tanto caminho a percorrer
Porque me doem já tanto as pernas?
Se ainda tenho tantas feridas a sofrer
Porque sangro já de tantas chagas internas?
Ainda não devia estar tão cansado,
Não podia estar já tão fatigado
Mas o facto é que estou.
Meu percurso pode ser insignificante
Ainda assim, creio que já vi bastante
Na porção da vida que já passou."
Toda a experiência de vida
Tem o seu peso desmesurado.
A única que não nos acerta em cheio
É a que nos passa ao lado.
Gentil dama
Criadora de meu ar
Escutai a minha trova
Acercai-vos da janela
Ouvi o meu cantar
Como quem doce beijos prova.
Estradas de fria pedra
Conheceram bem meus pés e meus ais
Mas meus olhos eram virgens
Para a beleza que carregais
E que voltarão a ver jamais.
Vosso rosto tudo me diz
Vosso sorriso não perdoa
Minha voz
Até vós
Leva o meu calor,
A minha serenata.
Sabeis bem que meu Amor
Vosso é
Nestes dias em que a Vida de mim se farta.
Assim vos falo, minha senhora,
Como se meu Amor fosse uma benesse
Bem se vê que a minha boca
Desfia um sentimento que desconhece...
LC